Por Francisco Gremaud, economista formado pela FEA-USP, graduando em História na FFLCH-USP e militante do Coletivo Graúna.
Muitas vezes ouvimos dizer que política e esporte se misturam. Ou então, que não deveriam se misturar. Que quem mistura esses dois “tabus”, talvez os mais comentados no dia a dia pelo povo brasileiro, estaria forçando barra, sendo caricato e inconveniente. Pelo menos é isso que se fala por aí, no nosso dito “senso comum”. Pois bem, a partir disso, acredito que os recém-encerrados Jogos Olímpicos de Paris 2024, além do histórico das Olimpíadas de modo geral, sejam ótimos exemplos para se contrapor a esse discurso hegemônico em nossa sociedade. Afinal de contas, os Jogos Olímpicos, desde a antiguidade grega até os tempos atuais, sempre foram eventos, também, políticos.
Na Grécia Antiga, contexto histórico no qual as Olimpíadas foram concebidas e praticadas inicialmente, os Jogos demarcavam sobretudo a integração cultural entre as diferentes cidades-Estados gregas. Havia inclusive a chamada “trégua olímpica”, em que todas as guerras e conflitos militares entre as cidades helênicas eram interrompidos para a realização dos eventos esportivos e o deslocamento dos competidores. Sendo assim, as Olimpíadas já nascem, em seu berço histórico, com um caráter essencialmente político.
Os Jogos Olímpicos Modernos também têm início com uma aspiração semelhante. Idealizadas pelo francês Pierre de Coubertin ainda no século XIX, as Olimpíadas Modernas têm origem no seio da Belle Époque europeia, em que a força do nacionalismo burguês e a disputa entre grandes Impérios coloniais pautavam o campo da geopolítica. Os jogos surgiram, assim, como mais uma demonstração de força e potência das nações até então consolidadas do norte global, sendo inclusive realizados apenas como uma parte anexa à programação da Exposição Universal de Paris em 1900, na sua segunda edição, ganhando mais relevância pouco a pouco a cada edição.
Uma evidência ainda mais concreta da conexão entre política e esportes deu-se em 1916, com o cancelamento dos Jogos Olímpicos que estavam previstos para acontecer na cidade de Berlim. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e estando as maiores potências olímpicas envolvidas diretamente no conflito, não foi possível realizar a principal competição esportiva do globo, que voltariam a ser realizados em 1920, desta vez em Antuérpia.
Entretanto, a capital alemã voltaria ao centro do palco desta nossa história política-esportiva, e novamente de uma maneira macabra. As Olimpíadas de Berlim ocorreram em 1936, auge do regime nazista naquele país. Após chegar ao poder na Alemanha em 1933 e anexar a Áustria - até então uma importante potência olímpica - em 1935, o líder eugenista Adolf Hitler planejava que os Jogos Olímpicos de 1936 fossem a consagração da superioridade da “raça ariana”, atribuída ao povo germânico, às demais populações do globo terrestre. Para isso, construiu o majestoso Estádio Olímpico de Berlim, até hoje importante e imponente, tendo recebido a última final da Eurocopa Masculina de Futebol, vencida pela Espanha.
Contudo, Hitler não esperava que, justamente nesse palco grandioso que ele armou para tal consagração, o nazismo sofreria sua maior derrota até então, e talvez a maior do ponto de vista simbólico antes da Batalha de Stalingrado: as vitórias de Jesse Owens no atletismo. O atleta estadunidense, negro, ganhou quatro medalhas de ouro naquela edição dos Jogos Olímpicos, sendo elas nas provas dos 100 metros e 200 metros rasos, no salto em distância e no revezamento 4 por 100 metros em equipes. Owens foi não só o maior vencedor esportivo daquelas Olimpíadas, como protagonizou uma das cenas políticas mais emblemáticas da História moderna ao subir diversas vezes no lugar mais alto do pódio e, assim, calar o próprio fuhrer e toda a plateia nazista presente no Estádio Olímpico de Berlim.
Como se sabe, a expansão do nazismo aliado a outros regimes fascistas nos anos seguintes à Olimpíada de Berlim desencadeou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com profundas marcas cravadas na geopolítica até os nossos tempos. Assim como acontecera em 1916, outras duas edições dos Jogos Olímpicos foram canceladas devido ao conflito militar de escala global: as Olimpíadas de 1940, que aconteceriam em primeiro lugar na cidade de Tóquio, e posteriormente em Helsinque, além das Olimpíadas de 1944, cuja sede teria sido a cidade de Londres. Após o fim do conflito, a capital britânica voltou a ser escolhida e sediou o evento nas Olimpíadas de 1948.
No entanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial, um novo conflito entre potências emergiu no cenário global a partir da oposição entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, encabeçado pela União Soviética. A Guerra Fria, como ficou conhecida tal disputa geopolítica, também adentrou nos campos esportivos ao redor do mundo, e aparecia com mais força justamente no cenário dos Jogos Olímpicos.
No cenário propriamente esportivo, talvez o maior ápice deste confronto se deu nas Olimpíadas de Munique em 1972, com a final do basquete masculino sendo disputada entre as seleções dos Estados Unidos e da União Soviética. Jogo polêmico, assim como a própria disputa política entre as superpotências. Mas com um gosto melhor que o amargor da queda do muro em 1989, a União Soviética venceu de virada, 51 a 50, após o árbitro acrescentar 3 segundos ao jogo e, assim, validar a cesta derradeira dos soviéticos. Vale também um destaque à ginasta romena Nadia Comăneci, primeira a conseguir um “dez perfeito” nas Olimpíadas de Montreal em 1976.
Já no cenário político, outras duas Olimpíadas se destacam por grandes boicotes à sua organização, algo até então inédito na história dos Jogos Olímpicos Modernos. As Olimpíadas de Moscou em 1980 foram intensamente boicotadas pelos países do bloco capitalista, em especial os Estados Unidos e os integrantes da OTAN, enquanto as Olimpíadas de Los Angeles em 1984 enfrentaram o inverso, com o boicote dos países do bloco socialista, com destaque para a União Soviética e os membros do Pacto de Varsóvia, porém com um impacto reduzido em comparação à edição anterior na Rússia.
Na edição seguinte aos boicotes, os Jogos Olímpicos de Seul 1988, houve uma tentativa simbólica de demonstrar a volta do “espírito olímpico”, de união entre os povos e uma exaltação da paz em alusão à “trégua olímpica” e aos conflitos vigentes no globo. Na cerimônia de abertura, dezenas de pombas brancas foram soltas ao mesmo tempo no objetivo de promover tal simbologia, contudo o resultado não foi o esperado: todas as pombas voaram em direção à tocha olímpica, já acesa, o que provocou a morte dos animais carbonizados, cena esta que foi transmitida ao vivo para todo o mundo ver. Podemos dizer, assim, que os sinais que antecederam a “paz” engendrada pelo “Consenso de Washington” ao fim da Guerra Fria já não eram dos melhores.
Desta forma, já na edição seguinte dos Jogos Olímpicos, os de Barcelona em 1992, a União Soviética enquanto nação não existia mais, tendo sido dissolvida no ano anterior. Sem tempo de se organizar a tempo dos jogos, a maioria dos comitês olímpicos nacionais recém fundados optaram por competir aqueles jogos sob a bandeira da CEI, Comunidade de Estados Independentes, grupo econômico formado pelos países ex-soviéticos logo após a sua transição para o sistema econômico capitalista.
Apesar de ter sua trajetória olímpica encerrada, tendo participado de apenas 9 edições dos Jogos Olímpicos, a União Soviética é, até hoje, com o encerramento das Olimpíadas de Paris 2024, a segunda maior detentora de medalhas de ouro, com 395, e de medalhas olímpicas no geral, com um total de 1010, atrás apenas dos Estados Unidos em ambos os quesitos.
Para além dos boicotes, o Comitê Olímpico Internacional (COI) também aplicou - e continua a aplicar - punições e banimentos dos jogos olímpicos por razões tanto esportivas, quanto políticas. A União Soviética foi banida dos Jogos Olímpicos em 1920, tendo participado pela primeira vez de uma Olimpíada na edição de Helsinque em 1952. Alemanha e Japão, principais perdedores da Segunda Guerra Mundial, foram banidos da edição dos Jogos Olímpicos de Londres em 1948. A África do Sul sob regime racista e colonial do apartheid foi banida das Olimpíadas de Tóquio em 1964, ficando apartada das competições até os Jogos de Barcelona em 1992. O Afeganistão, sob o primeiro domínio do grupo extremista Talibã, também foi banido das Olimpíadas de Sidney em 2000.
Contudo, o caso mais recente, e de maior destaque, é a situação da Rússia. Punida nas edições dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, que foram realizados no ano de 2021 por conta da eclosão da pandemia de covid-19, devido à acusação da Agência Mundial Antidoping (WADA) de uso de doping promovido pelo Estado russo, a Rússia não pode participar enquanto nação, sendo permitido apenas aos atletas competirem como “Atletas Olímpicos Russos”. É curioso notar que a mesma WADA que puniu os russos ainda não se pronunciou sobre o escândalo de dopagem da equipe de natação estadunidense em Paris 2024, caso reconhecidos pelos torcedores mundo afora por meio das “caras roxas” dos nadadores após a conclusão de sua prova.
Nesta última edição dos Jogos Olímpicos, em Paris, o COI emitiu uma nova punição à Rússia, estendendo-a a Belarus: o banimento de ambas as nações desta edição dos jogos por conta da ação de ambos contra a soberania nacional da Ucrânia. Desta vez, apenas poucos atletas individuais conseguiram competir, e só foram autorizados aqueles que não moram em seus países de origem e nem se pronunciaram a favor da Guerra na Ucrânia ou de seus governos nacionais.
Não quero aqui questionar se o banimento da Rússia e de Belarus foi justo ou não. Contudo, é possível afirmar que o mecanismo de banimento de uma nação a partir do COI pode sim ser um instrumento legítimo de pressão política internacional, como se viu no caso da África do Sul com o fim do regime colonialista do apartheid. Mas que também podem ser injustos, como foi o caso da União Soviética no período do entreguerras.
Assim, acredito que a questão central aqui é se há equilíbrio nas decisões do COI, isto é, se o mesmo peso que se aplica à Rússia e a Belarus são aplicados a outros países. Para quem acompanha os dramas e conflitos da geopolítica atual, a resposta para essa questão seria um rápido e sonoro “não!”. O caso mais destacado certamente é o do Estado de Israel, em que o regime sionista passa a agir além da situação colonial e de apartheid na Palestina, partindo para um genocídio aberto e televisionado do povo palestino. Se foi correto a suspensão da África do Sul no século passado, em plena Guerra Fria, e se o COI decidiu por banir a Rússia e Belarus pela agressão a outro país membro do COI, não há o menor sentido em não banir também Israel.
Desta forma, outros países também podem ser elencados como passíveis de banimento, como é o caso do Azerbaijão, acusado de promover um novo genocídio contra a população armênia e de ter realizado uma limpeza étnica na região de Nagorno-Karabakh nos últimos anos. Outro caso é o do Mianmar, cuja junta militar que governa o país é acusada de promover um genocídio da etnia Rohingya em seu território. Contudo, o principal caso a ser questionado é o do próprio Estados Unidos, a maior potência esportiva no cenário global, que há pelo menos mais de um século intervém na soberania de outros países através de golpes militares diretos ou desestabilização de governos anti-imperialistas. Casos recentes que apontam nesse sentido são abundantes, como as Guerras do Iraque, do Afeganistão, da Síria, além dos golpes por meio de lawfare em Honduras, Paraguai, Coreia do Sul, Ucrânia e no próprio Brasil.
Por fim, acredito que essa falta de coerência do COI na aplicação de punições e banimentos aos países que integram o quadro olímpico tem uma única explicação: política. Esta hipocrisia de punir um, mas não punir outro por motivos semelhantes apenas faz sentido quando percebemos que o COI não é uma instituição neutra, mas sim uma entidade política, assim como suas decisões também são.
Como procurei demonstrar ao longo do texto, os Jogos Olímpicos, na antiguidade grega e na modernidade, surgiram com um caráter político explícito, e continuaram a carregá-lo ao longo de sua história, através de diferentes conjunturas econômicas e sociais. Por isso, é importante compreendermos que aquele “senso comum” de que a política e o esporte não se misturam é não só falso, como também alienante. Ou seja, além de partir de uma premissa que não é verdadeira, a sua reprodução pela grande mídia e por setores mais conservadores é também perigosa, pois busca desviar as atenções de grande parte da população do caráter político inerente do esporte, que por sua vez é um dos principais fenômenos culturais em nossa sociedade, ocupando assim um papel central nas nossas vidas.
[Gostaria também de comentar um pouco mais sobre casos políticos específicos que aconteceram nas Olimpíadas de Paris em 2024, mas vamos deixá-los para um próximo texto…].
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